domingo, 15 de setembro de 2013

APOCALYPSE AGALOPADO

Apocalypse
Zé Ramalho - Rio de Janeiro
direto



Foi um tempo que o tempo não esquece
Que os trovões eram roucos de se ouvir
Todo um céu começou a se abrir
Numa fenda de fogo que aparece
O poeta inicia a sua prece
Ponteando em cordas e lamentos
Escrevendo seus novos mandamentos
Na fronteira de um mundo alucinado
Cavalgando em martelo agalopado
E viajando com loucos pensamentos

Querubins executam nas trombetas
Um acorde em todos instrumentos
Violeiros cantando mandamentos
Plangem cordas, violas e palhetas
Peregrinos carregam nas maletas
Suas tábuas talhadas por Sumé
Serpentários perdidos no sopé
Na montanha das aves carirís
Periquitos, canários e com-criz
Porta-voz do cacique Lucifér

Renuncio à morte e mato a vida
Aterrizo no céu minha astronave
Busco pedras, de fino alinhave
Solto raios, trovão não me intimida
Furacões nessa terra perseguida
Amolecem a fé no Criador
Derrubando muralhas com furor
Vem a Bêsta vingar enfurecida
Despertando em luz enegrecida
E assolando vulcões em seu vigor

Pelas praias parou o movimento
Das espumas gentis e flutuantes
Não há barcos de velas ululantes
Nem baleias na cor do pensamento
Nesse dia se fez o julgamento
Dos severos castigos do Senhor
Pro inferno quem vai é pecador
Grossas teias de fogo lhe acompanham
Sete quedas de braço lhe apanham
E estrangulam-no como um traidor

Entre os seios da Bêsta flamejante
Um cavalo de fogo se escondeu
Uma lua de lata apareceu
Numa aurora de luz alucinante
Do cavalo desceu um ser gigante
Caminhando que nem um vingador
Pareceu-me ser um gladiador
Sua rede tem pregos retorcidos
Arrastando cadelas e maridos
Para o reino do sonho aterrador

O serrote de lajes reluzentes
Obscuro ficou naquela hora
Um vaqueiro perdeu sua espora
Desonrado caiu entre os clementes
A beata Maria dos Parentes
Começou loucamente a se despir
Enforcou-se nos braços de Nair
Sua morte foi calma e tão serena
Parecendo Maria Madalena
Procurando um motivo prá sorrir

Sete botas pisaram no telhado
Sete léguas comeram-se assim
Sete quedas de larva e de marfim
Sete copos de sangue derramado
Sete facas de fio amolado
Sete olhos atentos encerrei
Sete vezes eu me ajoelhei
Na presença de um ser iluminado
Como um cego fiquei tão ofuscado
Ante o brilho dos olhos que olhei

Um metal esquisito e borbulhante
Como larva descia de um facão
Cujo dono montado num tufão
Carregava tal arma trucidante
E bramindo tal qual um elefante
Condenava a doutrina de mentir
Meu cachorro danou-se prá latir
Correu sangue no tronco da jurema
Vi o lombo da serra Borborema
Reluzindo o calor da carirí

Uma porta que abre-se rangendo
Sete gatos que pulam nos umbrais
Uma lua que geme por detrás
Sete bocas de gozo se mordendo
Sete dentes de ouro derretendo
Sete ondas gigantes sobre o mar
Sete fogos divinos de queimar
Sete cobras, piolhos de serpentes
Sete vidas de normas aparentes
Sete horas eu vou me levantar

Minha lira se chama Amaltéia
Meu cavalo se chama Mato-Grosso
Minha cama de vidro é um colosso
Meu planeta foi berço de Medéia
Minha asa foi feita na Coréia
Me trouxeram no bico de um condor
Carro forte, blindado e sem valor
Atrevido poeta e penitente
Olho fundo queimado de sol quente
E contraído de ferro e de calor

Não pretendo deixar dedos falarem
Nem fazer de você perda inútil
Nem vestí-la de sedas de um tom fútil
Nem querê-la dormente de bobagem
Meu tecido forjado de coragem
Nos teares ferventes de Satã
Destronado do trono desse clã
Meu juízo atirou-se na procura
Desviou-se dos beijos da loucura
Aquecendo o bocejo do acuã

A visão do meu olho cristalino
Captando cometas estrelados
Nebulosas e astros anelados
Através do cabelo de um menino
Seu sorriso tem ares de divino
Porque males nenhum pode sofrer
São crianças que vão sobreviver
Ao poder que reinou embrutecido
Pelo mundo ficou só o rugido
Dos motores que o homem quis fazer

Observo olhares sem destino
Perfurando ovários estrelares
Entretanto vacilam se buscares
Tua régua de olho cristalino
No cabelo só passa o pente fino
Na retina só vejo se olhar
No gameta desprendo meu colar
Na costela da perna de um Adão
Nos olhares das pernas de um pavão
Hipnóticos ao enfeitiçar

A revolta de toda a natureza
Mediante a matança dos seus bichos
Através dos grudentos carrapichos
Toda praga que vem é com certeza
O silêncio que paira na probreza
È capaz desse mundo acordar
Para um louco que vive a meditar
No dragão que matou a mocidade
Um herói que morreu pela metade
E se viveu não tem fôrça prá contar

Mas a vida me leva pela noite
Até o vento se cala a cotovia
Uma ponte até um outro dia
Um cangaço que pede um açoite
Que ninguém me convide que pernoite
Nos confins das crateras poluídas
Tenho várias couraças destemidas
E brazões de metais incandescentes
Tenho rio, riachos e correntes
Tenho chamas e são embevecidas

Quem duvida do fogo que não queima
Acredita na água que não lava
Atormenta botecos se deprava
Associa seu ódio com a teima
Portador dos bacilos e da reima
Adquire doenças genitais
Nos colchões supurantes onde vais
Expulsar a resina dentro dela
Adormeces no peito da janela
Engolfado nos gases de Alcatraz

Pode ser que ninguém me compreenda
Quando digo que sou visionário
Pode a Bíblia ser um dicionário
Pode tudo ser uma refazenda
Mas a mente talvez não me atenda
Se eu quiser novamente retornar
Para um mundo de leis me obrigar
A lutar pelo êrro do engano
Eu prefiro um galope soberano
À loucura do mundo me entregar

Aprendi muito cedo a solidão
Das pessoas que vivem sem pecado
Nesse mundo de eixo avariado
Não há ritmo de amor no coração
Mas o reino do grande Salomão
Alojou-se na mente de José
A malícia do mago Lucifér
A candura de um anjo serafim
Os tesouros da Costa-do-Marfim
E o futuro vai vir quando vier



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