Prof.
Luiz Ferraz Netto
Na
II Guerra Mundial os selvagens papuas, da Nova Guiné, assistiram à
chegada dos brancos que abriam pistas na floresta, falavam dentro de
latas, e logo depois faziam chegar enormes pássaros metálicos
cheios de alimentos e coisas admiráveis. Os brancos afirmavam ser os
fabricantes da comida e latas e dos aviões, coisa em que nenhum
papua acreditou.
O
que os brancos tinham era uma mágica eficiente para chamar aqueles
pássaros. E logo os papuas começaram a fazer suas próprias pistas
e a fabricar imitações das estações de rádios dos brancos,
erguendo fios sobre antenas de bambu, falando dentro das latas que
imitavam microfones. Não dava resultado! Os aviões não desciam no
"aeroporto" dos papuas. Paciência.
A mágica não fora bem feita. E recomeçavam tudo de novo.
E
uma nova religião, o culto cargo (nome inglês para carregamento),
nasceu da observação da técnica científica por parte de quem não
tem a menor idéia do que seja a Ciência.
O
relato não nos dá motivos para rir dos selvagens.
A
magia --- ilusão pré-científica de que é possível obter poder
sobre as coisas manipulando obscuramente forças desconhecidas ---
floresce ainda nas nossas sociedades industriais. É tal o seu peso
que algo de muito estranho se deu: a própria Ciência passou a ser
vista como uma espécie de feitiçaria. O cientista é imaginado como
um mago que obtém seu poder de fontes obscuras e de uma inteligência
inacessível ao comum dos mortais.
Façamos
uma experiência: vamos perguntar ao homem da rua por que, quando ele
aciona um interruptor, a luz acende. Obteremos uma vaga resposta
referente a uma entidade mitológica chamada eletricidade. Se
aprofundarmos o inquérito, ele nos dirá que se trata de coisas
muito complicadas, que só os cientistas (talvez ele use a palavra
engenheiros) --- isto é, os novos feiticeiros --- são capazes de
entender. Além disso, a Ciência, para ele, só se manifesta através
de uma coisa chamada matemática --- mistura confusa de números e
símbolos dotada de poder evocatório, como os antigos ritos.
O
selvagem não se espanta com os milagres técnicos. Para quem vive
cercado de milagres e tudo é mágica --- chuva, caça, vento, fogo
ou doença --- , que podem importar algumas mágicas a mais? Daí sua
indiferença pela fotografia, rádio, avião ou luz elétrica.
Nossos
avós, que saíam de um mundinho pacato, tradicional, onde as poucas
coisas que mudavam o faziam lentamente, espantavam-se e ainda se
espantam com os contínuos triunfos da era científica.
Mas
o homem comum contemporâneo voltou a uma situação muito parecida
com a dos selvagens.
Nascido
num mundo em contínuas transformações, apesar de acreditar na
natureza mágica da Ciência, nada mais lhe parece estranho. O
anúncio de que homens pousaram na Lua causa muito menos entusiasmo
que a notícia sobre Santos Dumont erguendo vôo num aparelho mais
pesado que o ar ou, num exemplo mais moderno, personagens de novela
falando com familiares, em outro continente, via computador.
Os
papuas fracassaram em sua tentativa de usar a "Ciência"
para fazer descer os aviões do céu. Desistiram dela, voltando à
vidinha que têm levado no último meio milhão de anos.
Mas
suponhamos que nós tivéssemos de desistir do uso da Ciência.
Suponhamos uma estranha amnésia atacando subitamente os cientistas e
técnicos do mundo. Todos esqueceriam o que sabem e seriam incapazes
de ler os livros científicos, de repente tão misteriosos para eles
quanto o são para os homens da rua. Estupefatos, olhariam para seus
aparelhos tornados incompreensíveis, tentando adivinhar para que
servem.
Em
questão de horas, grande parte da maquinaria industrial começaria a
agonizar e a imobilizar-se, enquanto seus responsáveis procurariam
manipulá-la ao acaso. Em poucos dias, milhões de cadáveres
juncariam as ruas das cidades. O colapso iniciado com a falta de
petróleo e eletricidade e o fim dos transportes rápidos, com o
passar das horas, atingiria os estoques
alimentares das cidades, que se esgotariam sem ser substituídos. À
noite, nas cidades paralisadas, apenas o clarão dos incêndios
acidentais e a Lua iluminariam as multidões em luta por restos de
comida.
Das
montanhas de lixo sairiam os fantasmas abolidos do passado: peste,
cólera, varíola, escarlatina. E as populações urbanas fugiriam
das cidades apenas para encontrar de novo a morte nos campos e
florestas.
O
motivo é simples: o Brasil, na época da independência, tinha 4
milhões de habitantes, bem menos do que tem hoje a cidade de São
Paulo. Produzindo alimento em escala nunca sonhada na história do
mundo, e diminuindo a mortalidade, a técnica científica permitiu um
imenso aumento populacional. Sem a possibilidade de produzir alimento
em massa, transportá-lo rapidamente e privado dos recursos da
medicina, esse "excedente" de população industrial
morreria em poucos meses.
Morreria
mesmo muito mais que esse "excedente".
Um
selvagem abandonado numa ilha deserta tem mais possibilidade de
sobreviver que um funcionário de banco.
O
homem da cidade científica não se assemelha a um antigo camponês
egípcio ou chinês: parece-se muito mais com uma formiga, que morre
quando desgarra de seu formigueiro.
Não
podemos agora viver sem a Ciência.
Mais
ainda --- não podemos viver sem que ela progrida. A população não
pára de crescer e a aplicação da Ciência, que fez surgirem as
imensas populações das sociedades industriais, criou para elas
problemas que antes não existiam: poluição da água e do ar,
superpopulação, novas doenças, habitação, transporte, educação
para milhões.
Só
a Ciência pode resolver os novos problemas que ela mesma suscitou.
E a
Ciência tem respondido ao desafio, ampliando a produção dos
alimentos, criando novos medicamentos, inventando computadores que
processam milhões de dados em velocidade fulminante e máquinas de
educar, estudando o cérebro humano e os recursos naturais,
planejando, prevendo, pesquisando.
Mais
e mais a sociedade precisa de cientistas e de conhecimento científico
para progredir e manter-se viva. Passo a passo, irreversivelmente, a
vida se torna mais e mais científica.
O
paradoxo de nossa época é que massas de homens, que sem a Ciência
estariam mortas, ignoram tudo da Ciência. O " novo jovem
selvagem" passeia por entre "mágicas familiares" ---
máquinas de ver à distância, de voar, de curar --- e não tem a
menor idéia de como funcionam.
Entre
os mais educados dos "novos selvagens" --- e há entre eles
pessoas altamente educadas, universitários, literatos, jornalistas,
juristas, filósofos --- existe mesmo a crença, muito divulgada, de
que a Ciência criou uma vida antinatural para o homem.
Mas
o que é natural? Que é voltar à natureza, ao mundo de antes da
Ciência? Um moinho de vento, uma enxada, um machado de pedra, o fogo
que cozinha os alimentos nada têm de naturais. São invenções
humanas. Em que um moinho de vento é mais natural que um moinho
elétrico, o uso do fogo mais natural que o da energia atômica e o
emprego da pedra lascada mais natural que o do aço?
Não
há caminho de volta.
Nossa
sociedade só pode resolver os problemas nascidos da aplicação da
técnica científica desenvolvendo a Ciência, aumentando o número
de técnicos, educando em massa sua população.
Essa
educação não se pode processar apenas nas escolas. Mais e mais a
divulgação científica, dedicada aos não-profissionais da Ciência,
ao homem da rua, aos jovens, aos especialistas de outros ramos, será
uma atividade fundamental para a Humanidade.
Nosso
conselho aos jovens --- participem da Ciência, não se
tornem um Jovem
Novo Selvagem.
(Do site
Feira de Ciências)
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